terça-feira, 23 de dezembro de 2014

DOS CICLOS SOCIAIS E DO FINAL DAS COISAS QUANDO AINDA ESTAMOS VIVOS

Abreu e Lima, 30 de novembro de 2014. 14h
 
Caros amigos incidentais, companheiros de jornada, amigos de todos os lugares, de moto clubes, usuários de veículos de duas rodas, gente diversa e versada em discutir sobre como desfrutar da motocicleta (e de como mantê-la em bom funcionamento), das viagens, dos relacionamentos em grupo e de nós, que driblamos os problemas da vida pilotando e fazendo parte da paisagem, bem vindos à vida.
 
 
Relutei muito em começar esse texto para não deixar que alguma mágoa o estragasse. Eu não queria parecer infantil ou descontrolado ao descrever com amargura os momentos passados de minha experiência, até porque tudo que me esforço em lembrar são as coisas boas. Gosto de apagar da memória tudo o que me machuca, não exatamente como quando se tem amnésia, mas resolve. E, mais uma vez, vou falar sobre motocicleta, do seu uso e de sua influência em minha vida. No princípio, quando começou a minha relação com os motoclubes, eu me comportava apenas como espectador. Fazia tudo o que me era solicitado, cumpria regras, horários, a fim de conquistar um espaço entre eles. E no começo foi um pouco duro ser aceito. Não entendia o funcionamento e não existe uma regra que define se alguém vai ser aceito nem, se for, quando vai ser aceito. Mais difícil é encontrar um espaço para suas ideias em qualquer lugar, ainda mais difícil num lugar onde há pessoas não te querem por perto e das quais você sabe muito pouco.
 
Sempre me disseram que a inocência protege. Nesse caso, logo que descobri que minha presença não era aceita unanimemente, pensei: e se eu não soubesse? Então, decidi seguir em frente, "pagar para ver", amparado pelo depoimento das pessoas que me queriam ali. Eu não tinha nada a perder, só a ganhar: conhecimento, amizades, experiências diversas, dados de pesquisa para o meu trabalho de conclusão de curso, entre outros.
 
A pior coisa que poderia acontecer, e aconteceu, foi eu ter sido convidado a me retirar, já que o meu aguçado instinto de autoproteção não iria permitir que eu tivesse que sair forçadamente. Minha personalidade era o que eu tinha ao meu favor, mas é nas características pessoais que os grupos encontram elementos de rejeição e de aproximação. E, dentre as minhas características, encontra-se uma que incomoda muita gente: a sinceridade. Ela é uma “faca de dois gumes”: com ela você cimenta muitas amizades sinceras, mas também alimenta o mal querer de muitos outros que vivem a fingir vidas perfeitas e que não gostam de ter suas verdades descobertas.
 
Não sei se foi a atitude certa continuar meu caminho sem me importar com as críticas, afinal de contas, a aceitação é também uma situação efêmera. Mas por um tempo foi muito bom. Até recentemente foi assim. E a vida é mesmo repleta de situações efêmeras. No meu trabalho, por exemplo, durante um tempo fui visto apenas como “mais um”. Alguns me viam como um novo bolsista, outros como um personagem de gibi, por causa do coturno e da jaqueta de couro, que fizeram parte da minha vestimenta durante uns anos. Mas com o tempo tudo mudou e eu adquiri o respeito da maioria, acredito. Situações efêmeras. Todas passaram. Em outros ambientes podemos optar. No meio motociclístico amador fiz muitas amizades. Não posso garantir que seja amado e admirado, mas acho que ao menos o respeito de uns poucos, porém importantes cidadãos, devo ter.
 
Não me considero o mais esperto dos sujeitos, mas sempre que posso tento dividir as coisas que aprendo. E, para isso, continuo minha saga de observar a vida para aproveitá-la melhor. E se eu pudesse deixar um legado a posteridade, seria um manual de boas maneiras. Não desses manuais de etiqueta à mesa ou de como se vestir. Seria mais parecido com um conjunto de observações e opções para você cuidar de si mesmo, evitando maiores conflitos com os seus semelhantes. Recentemente, tive a experiência de me ser solicitado devolver o brasão. Nos primeiros dias eu não consegui entender muito bem o que estava acontecendo, posto que tivesse dedicado quase quatro anos da minha vida a um clube. Mesmo assim o devolvi, pois entendo que o brasão não é do associado, embora tenha o uso e a posse provisória. Em seguida me senti “roubado” por acreditar que o que estava fazendo era uma contribuição para o clube que me ajudou a crescer enquanto usuário de motocicleta.
 
Neste momento estou considerando apenas o meu ângulo de visão. É claro que existem muitas outras coisas envolvidas. Não estou tentando parecer vítima de nada. As situações mudam e as suas ações passam a não significar tanto quanto no momento em que você as começou. Não foi culpa de ninguém, a vida segue seu compasso. Mas eu, neste momento de mudança, não estou conseguindo me ver escudado por outro grupo. Estou me sentindo o exército de um homem só. Dentro da estrutura de clubes, eu diria, porque no resto da existência eu sempre soube que se vem e se vai sozinho. Para meu consolo imagino que o alerta de alguns, sobre o excesso de motoclubes seja legítimo e eu esteja sofrendo suas consequências. Em Pernambuco passamos dos quatrocentos e sessenta. E ainda tem gente que me liga e diz:
 
-Vamos "montar" um MC?
E eu respondo:
-Para que, se há tantos?
 
Estou esperando a “febre de criação de MC” passar, pois vejo os eventos cada dia mais vazios e perdendo forças para existir. Em dado momento, um presidente de motoclube me disse: “se eu não tiver algum apoio, ano que vem eu não farei mais. Não aguento gastar tanto”. Outro grande evento do qual participei este ano estava vazio nos dois primeiros dias. Nem os expositores contumazes apareceram. Eu quase não encontrei gente conhecida. Espero não ter detectado um colapso do movimento. Justo agora que algumas associações estão criando forças e que a legislação está se modificando, que os criadores das políticas públicas de mobilidade estão começando a incluir a motocicleta como parte integrante do transito. Pequenas pesquisas no meio acadêmico, que incluem a motocicleta e os motociclistas não como causadores de mortes, mas como vítimas das péssimas condições de gerenciamento do tráfego, começam a aparecer.
 
As prefeituras estão tentando resolver o problema da mobilidade, ainda de uma maneira inconsistente, e que demonstra desconhecimento e inabilidade de se comunicar com os usuários. Mas o problema atinge todo mundo, em todas as grandes cidades. Em breve, eu acredito, um diálogo entre os legisladores e os motociclistas será inevitável. E nesse momento eu espero que os motoclubes estejam mais próximos.
 
 
 
Joel Gomes – acadêmico das ciências sociais, motociclista, motoqueiro, mototurista e motoclubista, escrevendo para se livrar das suas próprias dores, colaborando com o blog Os Sem Fronteiras (jotagomes@gmail.com). Com a colaboração de rafael_bull@live.com.